No final de setembro tive a oportunidade de participar numa campanha de monitorização e anilhagem de aves marinhas nas Ilhas Desertas, um pequeno arquipélago situado a cerca de 22 milhas a sudeste do Funchal.
Durante cinco dias vivi num dos ambientes mais isolados e intactos do Atlântico: um fragmento de mundo onde o tempo parece abrandar e o vento é uma presença constante.
A base operacional localiza-se na baía da Doca, na ilha da Deserta Grande. A estação, construída em 2005 para substituir o antigo refúgio de 1986, é hoje o coração da reserva natural.
Ali vivem em regime de rotação os vigilantes da natureza do Parque Natural da Madeira, que permanecem na ilha durante várias semanas, acolhendo ocasionalmente pequenos grupos de investigadores ou voluntários.
O edifício é simples, mas perfeitamente adaptado ao contexto: a energia provém de painéis solares e de um pequeno gerador, enquanto a água doce é recolhida numa cisterna pluvial. Os espaços são reduzidos uma cozinha, uma área comum, alguns quartos e um armazém, mas tudo funciona graças a uma logística precisa e a um forte espírito de colaboração.
À noite, o vento constante e o chamamento das aves marinhas substituem o silêncio: um concerto natural que acompanha todas as atividades.
Ilhéu Chão, Deserta Grande e Bugio formaram-se há cerca de 3,5 milhões de anos, na sequência de intensas erupções submarinas. As ilhas estiveram outrora unidas, mas a erosão marinha e os movimentos tectónicos acabaram por separá-las, moldando uma paisagem de falésias basálticas que atingem até 480 metros de altura.
A composição geológica é dominada por basaltos alcalinos, tufos e escórias vulcânicas, alternando em camadas vermelhas e escuras devido à oxidação do ferro. Vistas do mar, as ilhas assemelham-se a enormes bastiões coloridos que se erguem verticalmente da água.
O clima é temperado oceânico e seco, com menos de 300 mm de precipitação anual e ventos dominantes de nordeste. A temperatura da água varia entre 17 °C no inverno e 24 °C no verão, parâmetros que influenciam os ciclos reprodutivos das aves marinhas e a produtividade do plâncton nas águas circundantes.
Apesar da aridez, as Desertas albergam uma flora relicta de grande interesse biogeográfico. Foram identificadas mais de 200 espécies vasculares, muitas delas endémicas, ou seja, exclusivas destas ilhas. Entre elas destacam-se Sinapidendron sempervivifolium, Monizia edulis e Chamaemeles coriacea, plantas que desenvolveram adaptações extremas à seca e à salinidade.
Nas zonas mais expostas crescem líquenes do género Rocella, outrora utilizados na produção do pigmento “oricelo”, enquanto nas fendas mais húmidas sobrevivem fetos delicados como Adiantum capillus-veneris.

As Desertas são uma das áreas mais importantes do Atlântico para a nidificação de aves marinhas. As falésias e as plataformas basálticas oferecem refúgios naturais a milhares de casais reprodutores.
A Cagarra (Calonectris borealis) nidifica em centenas de casais, escavando tocas no solo ou entre os detritos rochosos. É uma espécie migratória que passa o inverno entre as costas do Brasil e da África do Sul.
A Alma-negra (Bulweria bulwerii) encontra aqui uma das maiores colónias do mundo, estimada em mais de 10 000 casais.
A Freira-do-Bugio (Pterodroma feae), espécie endémica e em perigo crítico, está confinada à ilha do Bugio, com uma população de cerca de 150 a 200 casais monitorizados anualmente segundo protocolos rigorosos de conservação.
O Roque-de-Castro (Hydrobates castro) é um pequeno procelarídeo noturno, reconhecível pelo seu chamamento profundo e rítmico que preenche o ar após o pôr-do-sol.

Para além das aves, vive aqui a foca-monge do Mediterrâneo (Monachus monachus), uma das espécies de mamíferos mais raras do mundo.
A colónia das Desertas, com cerca de 30 indivíduos, representa atualmente o núcleo mais estável da espécie um resultado obtido graças a décadas de proteção total e à restrição de acesso a várias zonas costeiras.
Os invertebrados também merecem destaque: foram registadas mais de 150 espécies endémicas, incluindo aranhas e escaravelhos únicos, indicadores do isolamento evolutivo do arquipélago.
Durante séculos, contudo, as ilhas sofreram a pressão de espécies introduzidas pelo homem. Cabras e roedores continuam presentes em algumas zonas, representando uma ameaça persistente para a vegetação nativa e para as aves nidificantes.
O trabalho diário centra-se na monitorização dos ninhos e na anilhagem científica de adultos e juvenis.
As aves são capturadas manualmente e colocadas durante poucos minutos em sacos de tecido respirável, para minimizar o stress.
Registam-se os principais parâmetros biométricos peso, envergadura, comprimento do tarso e do bico e aplica-se uma anilha metálica identificativa na perna. Este sistema permite acompanhar ao longo do tempo os movimentos, a sobrevivência e a fidelidade ao local de nidificação.
Um dos momentos mais marcantes foi o reencontro com uma Cagarra que ainda mantinha um GPS funcional, aplicado quase dois meses antes. Encontrar um dispositivo intacto é raro, pois pode soltar-se devido ao movimento da ave ou às condições atmosféricas.
Durante as inspeções aos ninhos é comum encontrar crias mortas, sobretudo nos locais mais expostos ou após noites de chuva e vento.
A mortalidade juvenil nestas colónias pode ultrapassar os 25% anuais, conforme indicado por estudos de longo prazo nas Selvagens e nos Açores. Trata-se de um fenómeno natural que contribui para o equilíbrio populacional: apenas os indivíduos mais resistentes sobrevivem até à idade adulta.
As Ilhas Desertas são atualmente uma Reserva Natural Integral, Reserva Biogenética do Conselho da Europa, Zona de Proteção Especial (ZPE) e parte da Rede Natura 2000.
O acesso é estritamente controlado: apenas investigadores, vigilantes ou voluntários autorizados podem permanecer na Deserta Grande. As visitas turísticas diárias, limitadas a um pequeno troço costeiro, decorrem sempre sob supervisão.
Para mim, estes dias nas Desertas foram um encontro direto com a ciência no seu estado mais puro.
English version
At the end of September, I had the opportunity to take part in a seabird monitoring and ringing campaign in the Desertas Islands, a small archipelago located about 22 nautical miles southeast of Funchal.
For five days, I lived in one of the most isolated and untouched environments in the Atlantic: a fragment of the world where time seems to slow down, and the wind is a constant presence.
The operations base is located in Doca Bay, on Deserta Grande Island. The station, built in 2005 to replace the old 1986 shelter, is now the heart of the nature reserve.
Here, park wardens from the Madeira Natural Park live on rotating shifts, staying on the island for several weeks at a time, occasionally hosting small groups of researchers or volunteers.
The building is simple, but perfectly adapted to its surroundings: energy comes from solar panels and a small generator, while fresh water is collected in a rain-fed cistern.
The spaces are basic: a kitchen, a common area, a few bedrooms, and a storage room, but everything works thanks to careful logistics and a strong spirit of cooperation.
At night, the ever-present wind and the calls of seabirds replace silence: a natural symphony that accompanies every activity.
Ilhéu Chão, Deserta Grande, and Bugio were formed around 3.5 million years ago, as a result of intense submarine volcanic eruptions.
The islands were once connected, but marine erosion and tectonic movements eventually separated them, shaping a dramatic landscape of basalt cliffs that rise up to 480 meters above sea level.
The geological composition is dominated by alkaline basalts, tuffs, and volcanic scoria, which alternate in red and dark layers due to iron oxidation.
Viewed from the sea, the islands appear as massive, colorful bastions rising vertically from the water.
The climate is dry, temperate oceanic, with less than 300 mm of annual rainfall and prevailing northeast winds.
Sea temperature ranges from 17°C in winter to 24°C in summer parameters that influence the breeding cycles of seabirds and the productivity of plankton in surrounding waters.
Despite the aridity, the Desertas host a relict flora of great biogeographical value.
More than 200 vascular plant species have been recorded, many of them endemic, found nowhere else on Earth. Notable examples include Sinapidendron sempervivifolium, Monizia edulis, and Chamaemeles coriacea, plants that have developed extreme adaptations to drought and salinity.
In the most exposed areas, lichens of the genus Roccella grow, once used to produce the dye “orchil”, while in damp crevices, delicate ferns like Adiantum capillus-veneris survive.
The Desertas are among the most important seabird breeding areas in the Atlantic.
The cliffs and basalt platforms offer natural shelters to thousands of breeding pairs.
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The Cory’s shearwater (Calonectris borealis) nests in hundreds of pairs, digging burrows in the soil or between rock debris. It is a migratory species, spending winter along the coasts of Brazil and South Africa.
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The Bulwer’s petrel (Bulweria bulwerii) finds here one of the world’s largest colonies, estimated at over 10,000 pairs.
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The Desertas petrel (Pterodroma feae), an endemic and critically endangered species, is confined to Bugio Island, with a population of about 150–200 breeding pairs, monitored annually through rigorous conservation protocols.
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The Madeiran storm-petrel (Hydrobates castro) is a small, nocturnal procellariiform recognizable by its deep, rhythmic call that fills the air after sunset.
Alongside seabirds, the Mediterranean monk seal (Monachus monachus), one of the rarest marine mammals in the world, also inhabits these islands.
The Desertas colony, with around 30 individuals, is currently the most stable population of the species a result of decades of strict protection and limited access to coastal areas.
Invertebrates also deserve mention: over 150 endemic species have been recorded here, including unique spiders and beetles, clear indicators of the archipelago’s evolutionary isolation.
For centuries, however, the islands suffered from the pressure of species introduced by humans.
Goats and rodents still persist in some areas, posing a constant threat to native vegetation and breeding seabirds.
The daily work focuses on nest monitoring and scientific ringing of adults and juveniles.
Birds are captured by hand and placed for a few minutes in breathable cloth bags to minimize stress.
Key biometric data are recorded weight, wingspan, tarsus and bill length and a metal identification ring is attached to one leg. This system makes it possible to monitor movements, survival rates, and nesting site fidelity over time.
One of the most remarkable moments was finding a shearwater still carrying a functional GPS device, attached nearly two months earlier.
Recovering a tag in good condition is rare, as it may fall off due to the bird’s movements or weather conditions.
During nest inspections, it is not uncommon to find dead chicks, especially in exposed sites or after nights of rain and strong wind.
Juvenile mortality in these colonies can exceed 25% per year, as shown by long-term studies in the Selvagens and the Azores.
This is a natural phenomenon that helps maintain population balance: only the strongest individuals survive to adulthood.
The Desertas Islands are currently a Strict Nature Reserve, a Biogenetic Reserve of the Council of Europe, a Special Protection Area (SPA), and part of the Natura 2000 network.
Access is strictly controlled: only researchers, wardens, or authorized volunteers may stay on Deserta Grande.
Day visitors are allowed only along a small section of the coast and always under supervision.
For me, these days on the Desertas were a direct encounter with science in its purest form.
Valeria Basciu